quarta-feira, 23 de março de 2011

questões estruturais

Laura era uma menina feliz.
Pelo menos achava que era. Até o dia em que percebeu que trabalhar não é uma dádiva, mas sim uma obrigação cotidiana e destruidora.
Não tivera oportunidade de estudar. Estudara até a 5ª série, e após isso, as despesas da casa ficaram extremamente pesadas e não teve outra alternativa: com 12 anos, começou a trabalhar.


Hoje tinha já 17 anos, e ao observar os seres humanos da mesma idade que a sua e que compravam produtos com ela na loja ( era vendedora ), observava que a maioria tinha uma mochila nas costas.
Estudantes. Aqueles que estudam.
Ficava maravilhada com o fato de que existem pessoas que podem estudar e entender o mundo tão melhor do que o pouco esclarecimento que ela tinha, que tinha sido permitido chegar a seus ouvidos.


Sempre pensava: como eles conseguiram? Por que eles podem e eu não?
Lembrava de todas as broncas que levava da chefe, que a chamava de lenta e burra.
Lembrava de todas as sátiras no seu emprego anterior, só porque ela falava o português errado.
Nem se lembrava mais se algum dia tinha aprendido o português, não entendia do que tanto riam.


Todos a chamavam de burra.
Não estudou, nem faculdade poderia fazer. E na realidade, isso jamais passou pela cabeça dela. Fazer um curso superior nunca foi possibilidade pra quem vem do lugar onde mora.


Se sentia inferior. Sabia que era incapaz.
Desesperou-se.
Por quê Deus tinha que ser tão cruel com ela?


Sonhava em poder estudar alguma coisa que gostasse. Sonhava em saber fazer contas.
Até mesmo sonhava com a possibilidade de algum dia conseguir terminar de ler um livro inteiro.
Sonhava com casa, com emprego, com filhos que tenham o que comer.


Sentia de fato uma saudade da infância. Não que fossem tempos mais felizes, mas é que talvez ela não soubesse quão infeliz era. E isso por si só já era motivo pra dar o mais alegre dos sorrisos, mesmo sabendo que a vida nunca tinha sido um mar de rosas, pelo menos pra ela.


Chegou em casa e indagou aos seus pais, já velhos e acabados de mais um dia de trabalho, como foi sua infância.
Eles disseram que ela era muito esperta, apesar de ter tido alguns problemas de saúde.
- Que problemas?!
Ficou curiosa.


- Nada demais, minha filha. O doutô disse que talvez você não pudesse crescer assim da altura das outras crianças, era muito magricelinha. Nem ser tão esperta quanto elas. Mas fora isso tava tudo bem, a gente era feliz.


Sua família sempre fora pobre. Seus pais a tiveram muito cedo, com 17 anos cada. Moravam de favor na casa da avó; seu pai, que tinha estudado só até a 6ª série, não conseguia achar emprego; sobreviviam com 600 reais mensais, com 6 membros na familia.


O fato é que a medicina tentou.
Mas a maioria das questões de saúde extrapola a medicina.
O doutor mandou os pais alimentarem ela melhor, pra que pudesse crescer. Disse que ela precisava aprender a gostar de comer outras coisas além de mistura de farinha, arroz e esporadicamente feijão.


- Mas doutor, gostar de comer de tudo, ela até gosta. Mas e dinheiro pra gente comprar, cadê?


Não tinham dinheiro nem pra pagar a passagem de ônibus até lá, quiçá pra comprar um quilo de carne (absurdamente caro).
Proteínas, proteínas.
Santos complexos estruturais, necessárias para que um organismo humano cresça adequadamente.
Proteínas, nessa sociedade, não são pra todos.


O médico então passou uma orientação de tomar mais leite e comer mais ovos, visto que carne era impossível pros pais de Laura comprarem; e também passou um complemento vitamínico alimentar para que ela pudesse desenvolver melhor seus sistema nervoso e assim ser uma criança normal.


Deu tchau à Laura e seus pais, e ao passo que estes saíram do consultório, virou para os acadêmicos e disse: pobre criança, com certeza terá sequelas neurológicas irreversíveis.


Essa parte da história, Laura não sabia.


Foi pensando na crueldade de Deus que deixou seu trabalho naquele dia.
Sentia-se mal consigo mesma; tinha vergonha de ser quem era.
E seguiu, cabisbaixa, rumo ao ponto de ônibus ao final de mais um dia exaustivo e injusto de trabalho.


Sem saber ela que burro mesmo é quem pode questionar porque tem crianças ainda no mundo passando fome, e não questiona.

2 comentários:

  1. Conheço um monte de histórias como essa... só que um pouco pior. o___O

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  2. Acho que quem questiona e fica acomodado ainda é um pouco mais burro (não que eu não me encaixe nesse grupo). Mas questionar é um grande passo, e então vem o entendimento e, com suor e sorte, mudanças.

    É legal você pensar nesse sistema todo com algum ânimo pra mudar. Eu, por exemplo, não aguento mais ficar triste e pensar: "mas que porra de injustiça". Então ânimo é bom.

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