domingo, 5 de maio de 2013

o ser e o nada


Acordou com o barulho da ré de um caminhão, aquele “piiip piiip” que encalacra nos ouvidos. Já chegara a encomenda, tão cedo?
Lembrou-se que tinha combinado de vê-la – a moça - ainda antes do almoço, e portanto a encomenda não estava tão adiantada quanto parecia. Era preciso que ela fosse entregue tão cedo, pois precisava chegar antes da visita.
Aguardou na cama, ainda deitado, olhando o teto, alguns minutos até ter a certeza de que o caminhão teria conseguido entregar a encomenda com êxito. Apesar de ser hoje o dia de encontra-la – a moça - e apesar da sua encomenda pro encontro Ter sido entregue em pontualidade britânica, não estava feliz. Seu olhar fadigado, seu semblante frustrado, sua boca muda. Não se anulava, posto que sua cabeça fervia de idéias e indignações. Mas a boca, ah... esta sim, fazia parte do complô armado contra ele por todos aqueles a quem ele amava, e mais do que isso, fazia questão de exibir um sorriso petrificado em todos os encontros. Maldita boca de pedra. Malditos olhos que de tão belos ofuscam tanta dor e frustração.
Os músculos, estes sim lhe eram fiéis. Recusavam-se a botar seu corpo em marcha, sempre que sabiam o que a cabeça pensava mas a boca não dizia. E nesse dilema interno permaneceu por vários minutos. Briga épica entre cérebro, músculos e coração. 
Gostaria de não precisar passar por isto pra encontra-la. Não seria o amor um ato máximo de entrega e compreensão? Quem sabe nos livros. Ou nos filmes. Não naquele apartamento.
Ouviu a campainha do seu apartamento tocando e, poucos segundos após, o ronco do caminhão anunciando que estava indo embora. Levantou-se e foi até a porta, uma caixa repousava sobre o tapete do corredor.
Pegou a caixa, abriu-a e consentiu com a cabeça. Estava ali, o machado que tanto precisava pro encontro. Sentia-se pronto, agora. Sabia que não queria usa-lo durante o encontro, mas caso se sentisse muito sufocado durante a conversa, teria esta válvula de escape, por mais que soubesse que não era a melhor saída. Tem dias que conversar com ela dá um revertério e sente uma imensa vontade de soltar a besta – ou os pensamentos, como preferir – interna, sem pensar nas consequencias. Sem auto-controle. Sem repressões. Não gostava de ter esses rompantes enérgicos e impensados, porém nem sempre era possível se conter. Sentia-se seguro tendo o machado por perto. 
Tomou banho e pôs-se na sacada, fumar um cigarro e espera-la. Ela o viu de lá debaixo, e acenou. Ele, nervoso, esboçou um sorriso amarelado, porém fez o melhor que põde. Sabia que em alguns minutos, nem isso seria possível. Maldita boca de pedra. Maldita boca de pedra.
Ela chegou. Já nem batia a campainha, apenas irrompia pela porta, tal qual a rainha em meio aos súditos. Entrou, e como de costume, lhe deu um abraço molhado. O abraço mais gelado e envolvente de todos. O frio do abraço nem lhe importava, porque pelo menos a sensação molhada se espalhava pelo seu corpo todo e ele se sentia acolhido. Petrificadamente acolhido. Aquele toque era como concreto pra ele, e ele se sentia estátua perto dela. Se sentia inanimado. Se sentia tão importante e notado quanto o poste que sustenta os fios de luz lá na rua.
Após o abraço, horas se passaram. Ela falou de tudo, de muitas coisas, sempre falava. Estático, ele ouvia. Sorria com os olhos, mas ela não notava.  Ao ficar perto dela, se sentia uma Medusa, porque ela nunca, jamais, o olhava nos olhos. Apesar de estar impossibilitado pelo abraço molhado de concreto, ele se esforçava pra dar o melhor de si ainda sorrindo com os olhos, visto que a boca era uma traidora, e os músculos teimosos, e o fato de ela nunca perceber o esforço brutal que fazia pra mostrar empatia com o olhar lhe causou ódio.
O que antes lhe parecia um charme e doçura travestido de loucura, ou quem sabe até mesmo autismo, por parte dela, agora se transformava num terrível ato de egocentrismo e individualismo puro. Como ele nunca percebera quão egoísta ela era? Como nunca vira que o seu abraço de concreto ao invés de aconchegante e envolvente, o transformava num ser inanimado, intocável e completamente solitário? Sentiu-se usado. Lembrou-se do machado.
Fez um esforço fenomenal pra mexer um braço, levantar e alcançar seu machado ainda na caixa. Ela nem sequer notou sua dificuldade. Aliás, ela nem sequer notou que ele havia se mexido.
Um enjôo visceral lhe subiu o peito, enquanto seus olhos se enchiam de lágrimas. Não queria Ter que usar o machado. Não aguentava mais aquela situação.
E sem dizer uma palavra, em silêncio e em desespero, deu um golpe certeiro bem no centro do crânio. Esfarelou-se. 
Ela ouviu um barulho de algo quebrando, como se fosse um vaso ou algo similar, mas não se importou muito com o fato. Até que viu tantos pedaços no chão, pedaços de concreto, mil pequenos pedaços. Olhou assustada pra todos eles no chão, e hesitou por alguns instantes em puro silêncio. 
Chutou alguns pedaços para o lado, pois atrapalhavam seu caminho. Passou por cima deles. E saiu pela porta reclamando da sujeira do apartamento.