quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

A travessia


Sentada na escadaria, observava atenta o fluxo de pessoas; uns indo para a aula, outros indo para a cantina, outros apenas jogando conversa fora, degustando um bom cigarro. Seus olhos atentos procuravam aquela figura enigmática de outrora. Não, não era alguém comum. Se havia uma palavra que o descrevia, essa com certeza não era “comum”. Ele era estranho. Soube disso desde a primeira vez que o viu, num desses encontros ao acaso no pátio, sem muita importância. Tudo nele era misterioso, desde o timbre da voz, às galochas fora de moda.
Não é que o procurasse; não era disso que se tratava. Na realidade, não queria estabelecer qualquer tipo de contato com ele, e mais precisamente, até fugiria caso o visse vindo em sua direção. Não, definitivamente não queria falar com ele. Apenas queria ter aquela sensação estranha de fita-lo de longe, e de viajar num ritmo frenético pela sua própria imaginação. Não sabia ao certo porque isso acontecia, mas era algo usual em seus pensamentos. De vez em sempre, aparece algo, ou alguém, que lhe desperta as mais incríveis fantasias, e passa horas e horas inventando histórias dentro da sua própria cabeça, histórias estas que se encaixam perfeitamente na visão momentânea que tem do alvo em questão. Visão essa que nem sempre corresponde à realidade - e ela sabia disso.
O que pra muita gente pode ser banal – ora, é apenas uma pessoa – para ela poderia ser motivo de riso incontrolável, ou de um pavor paralisante: era exatamente essa a graça de se ter uma imaginação tão fecunda, pensava. Nunca se sabe qual será a surpresa da vez. Viajava longe em seus pensamentos. Passava por planetas, galáxias, universos distintos, criava e descriava o que quisesse; e nos seus mundos recém-natos, quem redigia a história era ela. Sabia cada passo, cada detalhe daquilo que a despertara a atenção, ainda que fosse tudo inventado. Afinal... quem sabe dizer o que é real?
Era com essa expectativa de viajar mais uma vez ao redor do mundo, seguindo o fio de um só pensamento, que o procurava com olhos aflitos naquela manhã. Sabia que os degraus lhe forneciam a posição mais estratégica, pois no meio de tanto burburinho, e tanta gente passando, seria mais difícil a ele de lhe reconhecer. E caso reconhecesse, ela só precisava de um segundo e meio para levantar, e seguir o fluxo da multidão, perder-se no meio dela, e adeus, tornava-se intocável aos olhos dele. Era o local perfeito. De resto, poderia encostar-se na parede, caso tudo desse certo, e permitir-se ser hipnotizada mais uma vez por aquela presença secular.

Ah sim, esqueci-me de contar sobre ele. Era uma figura ímpar. Honestamente, ela sentia um pouco de medo dele. Sim, medo. Não é todo dia que se encontra uma pessoa que aparenta ter atravessado os séculos, assim, quase sem perceber, como por acaso. Tinha um aspecto envelhecido, apesar de ser jovem. Acho que a palavra conservado cairia bem, parecia ter sido banhado em sais de rejuvenescimento, em bálsamos de juventude, e com isso conseguia aparentar ter 30 anos, ao invés de 3 mil. Tinha uma pele morena, num tom incomum para uma cidade fria e pouco ensolarada em que vivia. Um moreno meio dourado, mas não dourado de praia. Uma morenice típica de pele que trabalhou sol a sol, durante quase meio século. Parecia um egípcio. Parecia que tinha acabado de ajudar na construção da esfinge, ou de alguma pirâmide qualquer praqueles lados, carregando debaixo do sol quente, junto com muitos outros homens, aqueles blocos de pedras pesados e rudes. De alguma forma, ela sabia que aquela cor dizia muita coisa. Sim, sabia que era uma das provas reais de que aquele homem não era daqui; pelo menos não originalmente.
Sua pele tinha um aspecto murcho, com aquela coloração dourada, e isso invariavelmente lhe remetia estar diante de uma múmia. Ele parecia realmente uma múmia, despertada de seu sono secular, sem nem ela mesma, a própria múmia, saber o motivo pelo qual fora despertada. Não é algo simples de se imaginar, ou adivinhar. De qualquer forma, esse tom cadavérico que ele tinha, era aterrador. Aquela pele... tinha calafrios na espinha só de pensar em tocá-la. Estava certa de que, se a tocasse, sentiria aquela pele murcha, fria, recobrindo os ossos moles, meio borrachudos por resistirem tão bravamente ao tempo. Os ossos, quem sabe fosse possível dobrá-los mil vezes, de tão borrachudos que deveriam ser! Ou quem sabe fosse o contrário... fossem duros tal qual uma pedra milenar, e quebradiços. Ficou na dúvida por um instante. Qual será a consistência de uma múmia? Porém em momento algum teve vontade de pegar no braço dele para poder sair da cisma. Era arrepiante só o ato de pensar nisso.
Mas o que mais a fazia estremecer eram os olhos dele. Foram eles que denunciaram a ela todo esse universo de mistério que escondiam. Eram ao mesmo tempo transparentes, e traiçoeiros. Exatamente o tipo de olhos que não se pode fitar por muito tempo, pois é capaz de se perder neles. Ao olhá-los, lembrava-se daquela história da Medusa, e tudo o que conseguia pensar era: ‘não olhe nos olhos! Não olhe nos olhos!’ Era por isso que o observava de longe; a tarefa número um era não olhar diretamente nos tais malditos, ou benditos, olhos. Eram profundos, e penetrantes: pareciam sugar toda a sua história em 3 segundos de observação. Ela tinha medo deles, dos olhos. Pareciam ter vida própria, e reluzir no escuro. Nunca o tinha visto na escuridão da noite, mas sabia que seria capaz de achá-lo onde fosse, por conta daquele par de olhos amarelos. Não de um amarelo ictérico, mas de um amarelo irídico vivo, imponente. A menina dos olhos parecia um risquinho, e não uma bolinha como é comum as pessoas terem. Olhos de felino! Era isso! Eram olhos de um tigre. Existe tigre no Egito?
Sabia que a pele e os olhos deixavam claro que ele não era daqui, desse século. A gente reconhece um colega de século no segundo que olha pra ele, e este definitivamente viajou no tempo, e veio direto de um livro de história praquele pátio. Quase uma questão de probabilidade quântica, ou algo assim. Não entendia muito de física, mas alguma coisa nesse mundo deve explicar a presença dele ali, naquele local, numa tarde ensolarada, em pleno século XXI.
Foi quando ele apareceu, descendo a rampa, e parando de frente pras escadarias, a conversar com dois homens também estranhos, mas bem menos estranhos do que ele. Teve a oportunidade única de poder analisá-lo de longe, sem ser percebida. O corte de cabelo dele, não era algo que se visse todo dia. Podia muito bem ter ficado daquele jeito, por conta de passar milênios sem cortar o cabelo, e terem crescido de maneira desordenada e aleatória. O jeito com que falava, pausadamente, era mister. Era como se fosse um poço de sabedoria. Tinha aquele olhar penetrante, e sempre um sorrisinho no canto da boca, como se debochasse dos reles mortais que nada sabem da vida. Parecia ser senhor de suas palavras, ter o domínio de quase todas as técnicas e conhecimentos, passados ao longo dos milênios, pela e para a humanidade. Ele era quase um livro de história ambulante, era praticamente a história da humanidade contada com tanta banalidade como se fosse qualquer um de nós contando algum fato marcante da nossa adolescência. Tinha aquela leve arrogância de quem sabe o que fala, de quem já viveu o que fala. Mas era simpático como o diabo. Tinha uma voz estranha, quase que presa na garganta e custosa de sair de seu lugar quente e isolado. Quando ele ria, parecia um faraó com aquela risada imponente, e ameaçadora, mandando cortar algumas cabeças e pouco se importando com isso. O timbre da voz dele tinha um quê de antigo, quiçá antiquado. As roupas então... não tinham sido compradas nem na C&A, nem em loja alguma que se conhece por aí; tinham aquele aspecto velho. Nem tanto por estarem desbotadas e amassadas, mas pelo modelo mesmo. Poderia ter comprado num brechó, quem sabe. Ou quem sabe elas tenham viajado no tempo, dentro da tumba, com ele. Vai saber? E as cores que o acompanham, sempre em tom de marrom, ou tom pastel. Aquilo sim era uma breguice sem tamanho. Sem falar nas galochas! Parecia que vinha do meio do mato direto para as aulas. Do meio do mato, ou de um terreno movediço, algo parecido com isso. Podia imaginá-lo usando aquelas galochas para conseguir não se afundar na areia, ou ser picado por algum escorpião do deserto.
Ao tomar este tempo para observá-lo novamente, pôde enfim concluir que toda a sua teoria fazia mesmo sentido: ele realmente tinha atravessado os séculos.
No instante em que chegou a essa conclusão, percebeu que o via cada vez mais de longe, sumindo da vista ao atravessar o pátio enorme e esvaziado. Pensou em correr e tentar puxar papo, mas acabou desistindo. Qual a finalidade? Aposto que ele seria a pessoa menos indicada para contar-lhe alguma novidade. Mal sabia quanto tempo tinha se passado desde que chegara, mas isso pouco importava. Subiu as escadas, rumo ao outro lado da rua, e se perdeu ao passar, uma a uma, pelas ruas tão contemporâneas.

7 comentários:

  1. Letícia

    Vim agradecer a sua visita e conhecer o seu blog.
    Gostei do seu conto, muito.
    Claro que pode trazer o meu post, se gosta, eu é que agradeço.
    Um beijo

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  2. Noooooooooooossa!
    Muito bom, Letícia!
    A-DO-REI!!!

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  3. wow, obrigada andré! fico feliz em ouvir isso! *-*

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  4. Achei excelente esse conto, do tipo que faz imaginar cada detalhe. Devo dizer que espero que esse cara não exista, porque tenho medo...?haha Acho que não.

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