segunda-feira, 9 de abril de 2012

Narciso

        Em meio aos escombros ele acorda. Atordoado, leva a mão à testa e sente algo grudado em sua pele. Sangue. Sangue seco, sangue frio. Ao ver o sangue seco em pedaços nos seus dedos, lembrou-se que estava com uma tremenda dor de cabeça. Tornou a deitar no chão, de costas, olhando o teto girar. Seria o teto ou suas vagas lembranças que giram nesse momento? Nauseado, deitou de lado e sentiu um caco de vidro espetar sua orelha. Vidro. Sangue. Nada muito incomum, pelo menos pra ele.
        Tentava lembrar o que acontecera, e tudo que lhe vinha em mente era uma grande nuvem branca, como se fosse assim um algodão doce recém feito, quentinho. Uma nuvem quente e envolvente. E lembrava-se que nela ele tudo podia. Tudo que queria poder e que não deixavam, naquele momento dentro dessa névoa compassiva, era permitido. E esbanjava tudo que tanto escondia, dores, raivas e amores. Libertava a alma de tanta angústia, tornando-se imortal nesse imensidão branca, nesse mergulho em si mesmo, nessa vontade de ser maior do que se é de poder esmagar tudo apenas com a força do pensamento. 
         Contudo, a força que usava não era exatamente a do pensamento, e o que destruira ali, naquele recinto, não chegava nem perto dos verdadeiros muros que deveria quebrar em sua vida. Quebrar copos, paredes e eletrodomésticos, é, de certa maneira, tarefa ridiculamente fácil, quando na verdade se quer mesmo é quebrar sentimentos e relações tão fortes e lapidados ao longo dos anos que quem sabe só uma tsunami seja capaz de quebrar. Mas não, nem isso. É preciso mais que cataclismas pra quebrar certas pseudo-verdades que se fazem tão certas aqui dentro. Tinha mais medo de verdades inventadas que de aranhas. Aranhas pelo menos são reais. Perder a vida pelo que existe só dentro da própria cabeça é um preço muito alto que essa coisa chamada "loucura" exige.
         Não estava disposto a pagar esse preço. Não lhe agrada acordar de tempos em tempos jogado ao chão, em meio a cacos de vidro e seu próprio sangue, que quem sabe nem seja só seu. Agressões gratuitas à coisas que não são, de fato, que lhe fazem mal ou lhe irritam. Ele não era seu pior inimigo; apenas estava tentando sobreviver, não da melhor forma, mas da única forma que vislumbrara no dia de hoje. Sabia que sua vida não pode ser feita de nuvens e escombros. Deve haver coisa melhor pra se viver.
          Dito isso, ainda que mentalmente, levantou-se do chão ainda nauseado, e viu tanta coisa destruída. Móveis, eletrônicos, pratos, sentimentos. Tudo ao chão, como se nada valessem. Como se nada valesse a pena. Sabia, lá no fundo, que tudo isso não passava de raiva pelo não dito, pelo não visto, pelo não vivido e mais ainda pelo vivido que ainda doía. Sabia que era covardia descontar em copos o que sentia por outras coisas e pessoas da vida. Sabia que não era de si mesmo que sentia raiva, ou vergonha. Ele sabia. Todos os rancorosos sabem porque se autodestróem.
         Mas, como aprendemos a viver de atalhos, socou mais uma vez sua cabeça na parede, sentindo-se culpado por tudo. Tudo que já aconteceu, que está acontecendo e que ainda está por vir. Sentia-se inclusive culpado por sentir raiva de si mesmo, não devia culpar-se quando na verdade sente tanta raiva e medo do mundo. O inferno são os outros, e disso ele sabia muito bem, mas só conseguia descontar a raiva em si mesmo, por não saber apontar os verdadeiros culpados. Quem sabe porque odiar-se é sempre mais fácil que odiar o que se ama, mas que talvez não nos ame de maneira recíproca. O amor e ódio são realmente vizinhos, concluiu. O amor pode gerar tanto ódio. Mas uma vez chegado ao ódio, era impossível chegar ao amor. Odiava-se por não odiar as coisas que deveriam ser odiadas.
         E ainda cambaleando, chutou todos os pedaços que viu pela frente, pegou sua carteira, e saiu. À procura de nuvens brancas, de falsos culpados, de qualquer coisa que lhe levasse pra longe de si mesmo. Saiu à procura de qualquer coisa que não fosse espelho. 

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