segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Rótulos

A frase “o inferno são os outros” nunca fez sentido pra mim. Sempre tive a impressão de que o inferno existia, mas que não era algo existente no mundo real, nem situado em qualquer outro lugar que não fosse minha consciência e meu estado de espírito. O inferno, na realidade, era eu. Cresci com essa idéia. Tornei-me adulta com essa idéia.

Bem, se o inferno sou eu, ele está em mim e eu nele, num uníssono horrorizante, num confundimento de existências e personalidades, se faz lógico concluir que aniquilar o inferno só depende de mim. Lógica formal, tal qual uma caixa de sapato sem sapato dentro: quadrada e vazia. Passei anos tentando aniquilar o inferno. Fracassei. O mundo continua ruim.

E é aí que mora o perigo. Ao desprezar-se tanto, o pensamento não consegue pensar em outra coisa que não em si mesmo. Ao culpar-se pelo mundo, ao odiar-se por tudo que acontece, ao querer não existir, é justamente aí que se põe em foco. Querer esquecer-se toma, então, o rumo contrário. Pensar em si mesmo toma todo o tempo, todo o minuto. Anti-narcisismo, porém com o mesmo efeito prático. O observador de fora só consegue perceber a dedicação incansável com que você pensa sobre si mesmo. Não consegue discernir o amor do ódio que sente. É impossível explicar aos outros o que se sente.

Esse paradoxo é uma bela demonstração das relações nesse mundo. De fato é possível comunicar-se? Quando se está entretido em não prejudicar o outro, em exigir de si mesmo ser o melhor ouvinte do mundo, é justamente aí que surge o efeito reverso. Ao se obrigar a ser o melhor que consegue pros outros, automaticamente o foco que estaria no outro, muda e vem em sua própria direção. Não é mais no outro que você pensa, é em você. Ao se preocupar em ser o melhor que pode, acaba deixando que surja uma barreira feita de espelho entre você e o mundo. As tentativas vãs de olhar – e se Deus existisse ele saberia o quanto gostaria de te enxergar, o quanto eu gostaria de te ver! – pro outro são esmagadas pela vontade de não errar. Não errar significa Ter atenção dobrada. Ter atenção dobrada significa observar cada passo seu, cautelosamente. Observar todos os seus próprios passos significa não enxergar nada além dos próprios pés.

Seria inútil tentar te explicar. Jamais entenderia. Tudo que você enxerga é minha imagem caminhando sozinha, olhando pra baixo e pra si mesma, sem se importar com nada ao redor. É isso que você vê em mim. É essa a imagem que passo. É isso que sou na prática. Ao pensar em você, me perco nos espelhos em minha volta e me perco na interpretação das coisas. Ao seguir meus passos, poderia jurar que o movimento ao redor, que os pés que tanto olho, eram na verdade seus. Podia jurar que você tava comigo. Triste saber que caminhei sozinha. Que te deixei sozinho. Que essa solidão nos consome.

Dentro de mim parece que o tempo é sempre diferente. Parece que vivo em outra dimensão. E agora, pensando em tudo isso, percebo que faz sentido me sentir assim. Tudo que penso se reverte numa prática grotesca de narcisismo e auto-sabotagem. Te faço mal porque te amo e me odeio. Te fazer mal é um jeito de me atingir, de me manter infeliz. E isso é narcísico pra caralho!

Ao te amar, escondo meu auto-ódio e arranjo um perfeito álibi para destruir  uma das coisas que mais tem valor na minha vida. Ao pensar em você, arranjo um motivo para pensar em todos os meus defeitos. Ao querer te fazer feliz, me lembro que com os itens anteriores – te amando e pensando em ti – se torna impossível atingir esse objetivo. O fato de eu te fazer mal é o que prova o quanto te amo. Se não fosse importante pra mim, eu não teria essa necessidade de estragar seu humor e tirar sua paz.

O ser e o parecer ser são um verdadeiro mistério, impossível estabelecer precisamente a fronteira entre um e outro. Difícil saber o que se é. Difícil entender que nem sempre o que parecemos ser – pelas atitudes – podem não corresponder aos desejos e crenças mais profundos e intensos e verdadeiros. A complexidade de querer ser algo e não conseguir, somada às expectativas externas, gera o caos. Expectativas externas acumuladas ao longo da vida, assimiladas de qualquer comentário banal, internalizadas como regra de vida. Só é possível viver quando se é perfeito. Só é possível ser perfeito se cuidando a cada passo e a todo instante. A busca pela perfeição do que dizem que somos – ou devíamos ser – leva ao estado catatônico de inércia e imersão profunda no próprio desespero e descontentamento.

Ao me enxergar assim, tão egoísta, orgulhosa, vaidosa, narcisista, por favor, não se engane no velho duelo entre essência e aparência. O que me preenche,  espelho nenhum consegue refletir. Desejo desesperadamente quebrar esses espelhos. Transpor a barreira. Conseguir enxergar além do meu próprio passo. Tirar meus pés do foco e ser livre para focar seus olhos. Ser livre do ódio a tudo que amo. Ser livre de mim mesma, do inferno criado na briga homérica entre aparência e essência.

Vencer este inferno auto-imposto é a regra para conseguir te amar como você merece ser amado. Sem espelhos. Sem rótulos.


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