sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Migalhas


Migalhas.

Do lado de fora da casa, no jardim, o cão se encolhia por causa do vento e da baixa temperatura na grama levemente gélida. Olhava fixamente o portão, o asfalto, o muro do outro lado da rua, a casa abandonada em frente à casa em que morava. Olhava o céu, sem estrelas, olhava a ausência da lua. Nenhum estranho passava na rua, para que pudesse latir e se sentir um cão vivo; nenhum conhecido saía de dentro da casa pra lhe afagar as orelhas, dizer-lhe uma palavra, muito menos brincar com ele. Sabia que estava vivo, se sentia vivo, mas por quanto tempo? Que diferença fazia? Sabia que estava ali a morar de favor, e que não era bem quisto. Sabia que a dona da casa se incomodava com sua presença. apesar de não ser rude com ele de forma alguma. Até demonstrava algum afeto de vez em quando. Pena. É claro que o pseudo-afeto que demonstrava era pura e simplesmente pena, de um ser cujo dono mal lembrava de sua existência. Vinha à casa na maioria dos dias, lhe passava a mão na cabeça, e só. Eram os únicos momentos do dia em que ele conseguia se sentir vivo. As outras pessoas passavam por ele, indiferentes, como se não existisse, como se quisessem que ele não existisse. E é por isso que fitava tanto a rua, o portão e qualquer sinal de movimento pra lá da calçada. Esperava a chegada daquele que tinha lhe deixado ali, e que apesar disso, sabia ele que era o único que ainda se lembrava e ainda se importava com sua existência. Todo dia, e toda noite, sentava e esperava pacientemente pela atenção que tanto sonhava, enquanto fitava as grades do portão. Sentava à espera das sagradas migalhas que o lembravam, ainda que porcamente, de que estava vivo.


Entre o lado de fora e o lado de dentro da casa, estava a lavanderia. Uma das partes mais solitárias que qualquer casa pode ter. Só vão lá para realizar alguma tarefa chata, e com toda a pressa do mundo. Ninguém passa algum tempo na lavanderia porque quer, e ele sabia bem disso. Na parede, de frente para a pia, estava sua gaiola. Solitário, não podia nem olhar o céu sem estrelas, e nem a casa abandonada do outro lado da rua. Tudo que ouvia eram os pingos que caiam tristemente da torneira, e que quebravam a monotonia da noite. Há dias se sentia assim, só. Desde que eu amigo morrera, nunca mais teve afeto ou atenção de quem quer que fosse. Eram em dois naquela gaiola, e lembra-se de que juntos, todo dia, reclamavam de não serem livres, de não poderem estar pelo mundo afora desbravando cores e flores. Agora, se sentia ainda pior do que naqueles dias, porque pelo menos tinha alguém pra dividir sua miséria; agora já nem isso. A morte levou seu companheiro, e tudo que lhe resta de companhia é o som das gotas de água caindo na pia, e a dona da casa que uma vez por dia, lhe colocava comida. Era essa a atenção que recebia: comida. Melhor do que nada. Sentava em seu pequeno puleiro e esperava, pacientemente, a hora do dia ou da noite em que alguém se lembrasse dele, nem que fosse para lhe servir comida. Via o mundo por detrás de suas grades solitárias e esperava um pingo de afeto. Sagradas migalhas, que ainda o faziam se sentir porcamente vivo.


Do lado de dentro da casa, pela grade da janela, a dona da casa se colocava a fitar o céu sem estrelas, o asfalto, a rua inabitada e a casa abandonada do outro lado da rua. Da janela do seu quarto, o último e mais escondido da casa, esperava por algum sinal. Uma mensagem, uma ligação, uma visita inesperada; nada acontecia. Ao olhar pela janela, se sentia presa numa gaiola, e sufocada pela própria solidão. O que lhe restava? Tantas idas e vindas. Tantas pessoas se foram. Morreram, ou simplesmente a abandonaram. Tanta gente se vai. Tudo é um grande adeus. Ninguém viria para lhe fazer um carinho, nem que fosse por alguns minutos. Dito isto, uma lágrima escorreu-lhe rosto abaixo, e ouviu um ronco. Vinha de dentro de si mesma, concluiu que era fome. Ninguém viria para lhe dar comida. Estava absolutamente só. Foi quando olhou o cachorro na grama, com o olhar tão perdido quanto o seu, e decidiu ir lá fora fumar um cigarro e afagar-lhe a cabeça. Fez isto por alguns minutos, e então lembrou-se que sua mãe havia pedido para que alimentasse o passarinho na lavanderia. Terminou o cigarro e foi alimentar o pássaro, que jazia em sua gaiola quieto, cabisbaixo, e que não demonstrou sentimento algum ao receber comida. Fitou o passarinho por algum tempo, e não sabe porque, mas sentiu uma vontade imensa de chorar. Sentiu-se mal por não ter dado e nem querer dar mais atenção aos dois outros animais que também habitavam aquela casa vazia. Sentiu-se mal por ter sentido um pouco de conforto em saber que apesar dos pesares, mais dois seres tão amaldiçoados quanto ela também habitavam aquela casa nesse momento. Sentiu-se mal, mas nada pôde fazer em relação a isso. Subiu as escadas, e voltou ao seu quarto escuro, a fitar o céu sem estrelas por detrás das grades da janela.
Migalhas. Pequenas migalhas que ainda a faziam se sentir porcamente viva.

Migalhas.

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